VÍdeo Delas – A vida ribeirinha na Amazônia: o relato de uma sereia

(Fotos – Fernando Marrera)

Criamos um diálogo entre o folclore brasileiro e a experiência da jornalista que acompanhou de perto a vida das mulheres ribeirinhas no meio da floresta amazônica.

A entrevista completa da Marcela você pode conferir neste link. Chega mais!

Plus size fashion – A representatividade no mundo da moda

Você já se sentiu representada no mundo da moda? Para discutir sobre o merecido lugar de cada uma nesse cenário, entrevistamos a modelo plus size brasileira Ana Bastos

 

A palavra representatividade tem ganhado muita força nos últimos tempos – e que bom! A sua aplicabilidade é que ainda é bastante baixa. Se compararmos na prática as estatísticas de porcentagens raciais e dos pesos e medidas da maioria da população do mundo todo com o que vemos nas mídias de cada país, é fácil percebermos que tem algo muito errado aí. O que aparece nos websites de busca são padrões que não representam, de fato, todas as pessoas, ou, pelo menos, a maioria delas. Mas por que isso ainda acontece? Por que ainda aceitamos imposições genéricas se somos todos diferentes? Você, por exemplo, já se sentiu representada no mundo da moda?

Mergulhando nessas questões, entrevistamos a jornalista de moda e modelo plus size Ana Bastos, 28. Depois de cinco anos morando em Dublin, na Irlanda, Ana sentiu uma grande necessidade de se sentir representada. Mas isso não porque mora fora do seu país – isso veio desde antes, ainda no Brasil.

“No meio de tantas mulheres da moda, digital influencers, quantas são gordas? Quantas não são daquele padrão tipo modelo, e quantas são negras, pardas, com o cabelo crespo?São beeem poucas, e isso me deixa muito revoltada. No Brasil não tem tantas G, GG, negras, de cabelo crespo. E isso em qualquer lugar do mundo, até mesmo nos Estados Unidos, onde a cultura negra é bastante forte também. A verdade é essa: Se eu não me representar, ninguém vai”.

 

E ela tem razão. Pesquisando sobre o mercado plus size no Brasil, ainda que tenhamos modelos plus size e negras famosas hoje em dia, o que se encontra é uma grande maioria de modelos magras e brancas. Isso, num país com mais de 50% de uma população que se considera preta ou parda, de acordo com o Censo 2016. Alguma coisa está muito errada e algo precisa mudar, não é mesmo? Segundo Ana, as pessoas têm vergonha de ser o que são, e ela usa exemplos. “Uma plus size tem 100k de seguidores no Instagram e, as outras influencers, que têm conteúdo igual ou inferior, mas que são magras, têm muito mais seguidores.

“O que mais me entristece é o fato da plus size não seguir a mulher plus size. Por que uma plus size não apoia a outra? E eu falo por mim mesma, pois, por não existir fama em volta disso, eu mesma não conhecia as plus size até pouco tempo atrás”.

Ana, que tem um perfil no Instagram, acredita e muito no poder da representatividade. “Estou entrando nessa para representar. Representar primeiramente a mim mesma e, em seguida, a todas aquelas que se enxergam em mim”, conta a jornalista.

Segundo a paulista, a questão é se sentir bem na pele em que se está, não esquecendo da saúde também. “Não é porque não me importo em ser gorda que não me preocupo em controlar o sal, o colesterol, em ir à academia por motivos de saúde, mas não por estética. Nosso corpo é o nosso templo, então, se quero viver muitos anos, não dá pra não se importar com isso. Se eu quero passar para as pessoas que dá para ser saudável sendo gordinha, então que eu faça isso da forma certa”, conta.

O mercado da moda, embora tenha adquirido avanços nos últimos anos dentro dessa temática, ainda não consegue ver seus pilares na diversidade, e seus padrões sempre obrigam as pessoas a fazerem coisas para caber dentro deles. Isso devia ser o oposto. Se tantas pessoas precisam de roupas com tamanhos diversos, deveria ser o mercado obrigado a se adaptar. Segundo Ana, a mudança ainda está bem devagar. Podemos conhecer modelos famosas, mas não com a mesma fama das que correspondem ao padrão.

“Quando emagreço, fico feliz. Mas, por que estou ficando magra? Não, porque as roupas começam a me servir! Não tem roupa para mim, então óbvio que vou ficar feliz quando for numa loja e as roupas me servirem!

“Mas isso não quer dizer que eu queira mudar quem eu sou, mesmo com a sociedade me dizendo que eu deveria querer mudar. Talvez seja por isso que vejo que não existam tantas plus size super famosas como as mais bem pagas, as magras – simplesmente porque não tem marca que as vistam! Então, como elas vão trabalhar, se não têm produto para isso? Algumas lojas, por exemplo, têm 1G até 5G de roupas da moda, descoladas, que eu gosto de usar, mas, a grande maioria que apresentam uma coleção GG fabricam uma roupa sem estilo ou de senhoras, que parece da minha avó, ou com a padronagem não tão boa. Então é óbvio que vou querer emagrecer, e não porque me sinta feia, mas, justo eu que trabalho com moda, vou andar mal vestida?”, pontua a paulista.

Nesse contexto, Ana revela que precisa se virar. Como no episódio em que tinha uma festa de casamento para ir ao qual o dress code era black tie, ou seja, vestido longo, e ela não encontrou nenhum para comprar do seu tamanho. “Eu pensei ‘tenho as opções: vou deixar de ir no rolê  que estou muito à fim, ou vou tomar laxante para caber melhor nos vestidos, como eu fazia antes?’. Não, não vou fazer mais isso! Então montei um look com uma calça pantalona e um blazer, uma blusa de decote fundo e fui. Foi maravilhoso, fui bastante elogiada e assim mostrei que todo mundo pode. “Já vi muitas amigas minhas chorando, deixando de ir a lugares porque não tinham roupa, e eu fiz essa situação mudar e por isso fiquei tão feliz”

”Se mais pessoas dessem a cara a tapa e mostrassem quem são verdadeiramente, sem querer passar a falsa imagem de que a vida é perfeita, então acho que isso poderia afetar positivamente a vida de muitas mulheres. Serão menos sentimentos de inferioridade”.

Para ela, a internet tem um grande papel que ainda precisa ser desempenhado e, dentro disso, ela tenta fazer a sua parte, e espera poder mudar a vida de muitas mulheres, como muitas mudaram a sua para melhor. “Eu deletei muita gente que seguia, mulheres com falsa imagem de vidas perfeitas, com jóias e sorrisos, e pensei: ‘por que vou ficar com esse bando de gente que me não me acrescenta nada?’. Digo isso porque quando você começa a ver esse mundo toda hora, passa a se sentir inferior, e isso te afeta negativamente sim. Deletei todas as que não me acrescentavam e coloquei gente que me coloca pra cima, que mostra que a vida é para todas”, finaliza. 

Autorizamos a reprodução de todos os nossos textos sob a condição de que se publique juntamente o link ativo para o original do Elas Sem Fronteiras ♥️.

Vídeo delas – A vida ribeirinha na Amazônia: o relato de uma sereia 2

(Fotos – Fernando Marrera)

Criamos um diálogo entre o folclore brasileiro e a experiência da jornalista que acompanhou de perto a vida das mulheres ribeirinhas no meio da floresta amazônica.

A entrevista completa da Marcela você pode conferir neste link. Chega mais!

 

Vídeo delas – Empoderamento sem medida

Pra quem tá acompanhando a gente agora, somos um espaço dedicado inteiramente a dar voz a mulheres reais. Entrevistamos dezenas de mulheres no mundo todo e exploramos um pouco mais do universo de cada uma delas, traçando um diálogo com o universo de todas nós. Afinal, somos únicas e tão diversas, mas somos tão semelhantes e, juntas… Somos tudo, somos o mundo!

Essa é a história da querida Ana Bastos que hoje mora em Dublin, na Irlanda, e contou pra gente das delícias de se ser autoconfiante e de como é trabalhar para o mercado de moda plus size.

A entrevista completa da Ana pode ser acompanhada neste link  e também neste outro. Chega mais!

Empoderamento sem medida

Em meio ao discurso global de empoderamento feminino, entrevistamos uma jornalista e modelo plus size prá lá de empoderada!

 

English Version

O termo “Empoderamento feminino” tem ganhado destaque no mundo inteiro, dando espaço para aquelas que vêm sendo as luta das mulheres durante séculos. Visando a equidade de gêneros, o empoderamento busca adquirirmos a responsabilidade de desenvolvermos nosso próprio poder, e assim estarmos prontas para assumí-lo. Então, a partir daí, estamos aptas a estender a mão às mulheres para que elas também iniciem esse caminho. É uma união, uma irmandade, onde o poder da outra é o nosso poder, e vice-versa. É enxergar a outra mulher como uma irmã e companheira, e não mais como rival.

Nesse caminhar, a ONU Mulheres e o Pacto Global criaram os Princípios de Empoderamento das Mulheres. Eles são um conjunto de considerações que ajudam a comunidade empresarial a incorporar em seus negócios os valores e práticas que visem à equidade de gênero e ao empoderamento das mulheres. Tudo o que mais queremos é exercer nossa capacidade sem encaixarmos nas limitações e padrões pré-fabricados de nenhuma sociedade, não é mesmo?

Para ilustrar mais esse cenário de mulheres que derrubam padrões, entrevistamos com muito carinho a paulista Ana Bastos. Ana, 29, atualmente mora em Dublin, na Irlanda, e trabalha como jornalista de moda plus size. Empoderada desde criança, ela reconhece alguns momentos em que se deixou levar pela sociedade, e viu na necessidade de apoio psicológico para mulheres de todos os estilos a oportunidade para criar seu perfil no Instagram. Eu sempre fui muito segura de mim. Quando eu era pequena, sempre fui a diferente, com muita cor, muita estampa, com corte de cabelo diferente e tal, mas, conforme fui crescendo, em torno dos 17 anos, veio a crise do ‘sou gorda, meu cabelo não é liso’, e fui entrando nessa pilha na faculdade do ‘sou feia, sou gorda’, aí meio que me escondi, me tornei uma Ana durona, meio ‘fechadona’. No Brasil, um episódio me marcou bastante. Durante a festa de uma faculdade particular de São Paulo, pelo motivo de ser gorda, um cara me chamou de mamute. Eu sempre soube que a galera era meio idiota, porque tinha dinheiro e achava que era o rei do mundo. Esse foi, inclusive, um dos motivos que me fez querer sair do Brasil.

“Nesse dia, eu passei e o cara me falou ‘O rosto é tão bonito, mas parece um mamute!’. Foi a primeira vez em que eu dei um soco em alguém! Eu virei um murro no nariz do cara!”, conta a jornalista. Depois dessa agressão verbal, Ana conta que ficou ainda mais fechada.

Na Irlanda, um outro caso de agressão e preconceito aconteceu com a jornalista, na ocasião em que uma empregadora não a quis contratar pelo fato de ser negra.

“Eu fui fazer a entrevista e, logo que me viu, ela falou ‘Nossa… sua cor!’, ela nem disfarçou assim, sabe? Daí eu falei ‘É, a minha cor”, e ela respondeu, ‘Nossa… Eu não tava imaginando…’. Eu não estava entendendo mesmo que aquilo estava acontecendo. Não quis acreditar, achei que ela estivesse dizendo que eu estava bronzeada, sei lá. E ela continuou falando da minha cor no meio da entrevista, então aí eu percebi que era preconceito pelo tom, pelo fato dela ter abraçado e dado um beijo na minha amiga e não ter me abraçado, e isso foi uma coisa que me marcou muito”.

“No entanto, eu já estava mais segura de mim, e isso não me abalou psicologicamente como o caso do garoto da faculdade. Meus amigos é que ficaram chocados e sofreram bastante por mim, até porque quando alguém fala que sou gorda e negra, beleza, eu sei, são características e isso não me machuca, porque estou muito segura e certa de mim”. 

“É muito claro para mim quem eu sou, então essas coisas não me abalam”, conta.

No entanto, Ana sabe que ainda muitas mulheres e pessoas em geral, independente de gênero e idade, precisam e muito se amar e se respeitar.

“Se ame e dane-se o que falam de você. Não importa o que as outras pessoas acham de você, o que importa é o que Deus sabe e você mesma. Você está orgulhosa de quem você é? Se você se olhar de outro ângulo, vai dizer ‘Mano, é essa Ana que você quer ser?’, então você está no caminho certo. Se ame! Não se sinta inferior, não deixe que ninguém te faça sentir inferior e não se esqueça que a vida é muito mais do que um feed organizado, do que um corpo sem curvas ou com curvas demais. A vida é muito mais do que isso”, ressalta.

Ana realça muito a questão da segurança e do quão importante é estar bem consigo mesma. “Sempre reclamava muito de mim, sempre achava que eu podia ser melhor, até porque eu sempre ouvi muito, muito, que eu era bonita da metade pra cima. Do rosto para cima. E por mais que eu não ligasse pra tudo que me falavam, de uma certa maneira nosso coração vai pegando aquilo e isso foi criando uma barreira dentro de mim, uma muralha. Não que eu não me amasse, mas eu poderia me amar muito mais, eu poderia fazer muito mais por mim. E tudo isso mudou quando comecei a colocar a minha fé em prática, a orar. Penso, se Deus me deu essa coroa, que é meu cabelo maravilhoso – que eu realmente acho que ele é minha coroa – se Ele me deu esse tom de pele que as irlandesas daqui passam milhões de produtos para ficarem com a mesma cor, se Ele me deu a boca carnuda, o nariz mais avantajado, eu sou perfeita do jeito que Ele me fez e nada mais importa”, pontua a jornalista. Segundo ela, a partir do momento que você tem um propósito na sua vida, você passa a não ligar para o que as pessoas pensam, e o que importa é se você está feliz e saudável para ir atrás dos seus objetivos. E, no mais direto sotaque paulista, ela relata – “Mano, tu pode! Nós podemos tudo, nós somos tudo aquilo que nós queremos ser”, finaliza.

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A Garota Árabe

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Dizem que os olhos são o espelho da alma. Mas e quando a gente não consegue decifrar a alma? Os olhos contam a própria verdade de um ângulo muito subjetivo, e nem sempre conseguimos entendê-los. Na maioria das vezes, precisamos de tempo e convivência. Com Nahla foi assim. Todas as manhãs, eu abria a porta da classe, e, lá estava ela. Eu chegava atrasada e sempre me sentava ao lado dela. Mas sentar ao lado de Nahla era uma experiência única e grandiosa, pelo menos para mim. 

Olhos grandes, sem maquiagem – aqueles olhos nunca cruzavam com os meus. Pele morena e sobrancelha grossa. Era tudo o que eu podia ver no estreito espaço entre o lenço que cobria a cabeça e o rosto. Quando a conheci, tinha lido o livro “Princesa Sultana” há cerca de dois meses. A referida obra tinha mexido muito comigo, expondo a realidade das mulheres da Arábia Saudita por meio de relatos de uma jovem da nobreza e seu diário. Naquela época, eu ainda não tinha conhecido a Cris. Ela era uma amiga que havia morado no Omã e trabalhado como estagiária na exploração de petróleo. Ela viria me relatar muitas coisas que, até aquele momento, eu não sabia sobre a cultura e as mulheres árabes em geral.

Eu não escondia o meu interesse na cultura de Nahla. Queria saber como eram as coisas, realmente. Acreditava que, estar ali ao lado dela todas as manhãs, era um presente. O fato que mais me deixou curiosa foi a primeira vez que a vi bebendo água com a garrafa por debaixo do véu – Nekab ou Niqab, de acordo com o país dela, a Arábia Saudita. 

Achava diferente como ela usava aquelas roupas, como ela se portava. Sempre tinha vivido no Brasil sem nenhum contato com ninguém da cultura Àrabe, até então, e tudo era novo para mim. Nas fotos da turma, Nahla nunca estava, pois era proibido pelos seus costumes, segundo ela. Com o passar do tempo, fomos nos falando todos os dias, e, com um conforto maior, conversávamos com mais frequência. Um certo dia, eu, desatenta, e sem medir o peso das minha palavras, após ela dizer algo sobre a Arábia Saudita, pontuei:

_Sim, eu sei um pouco a respeito do seu país, logo lembrando do livro da princesa. 

Foi aí então que que, de interessada, eu passei a ser o alvo do interesse súbito dela. Virando bruscamente a cabeça e olhando fixamente para mim, pela primeira vez, ela perguntou:

_O que você sabe sobre o meu país? Eu acho que você não sabe nada.

Eu, sem graça, lembrei de tudo que havia lido no livro e, querendo evitar ao máximo o constrangimento e o choque entre as nossas duas culturas, disse, numa espécie de teste “pensa rápido”:

_Comida! A gastronomia árabe é muito famosa no Brasil!

Logo eu, vegetariana, que só conhecia tabule, hummus e pão sírio. Realmente, eu não sabia N A D A da cultura dela. No entanto, a minha estratégia para me safar do meu comentário e, dessa forma, evitar um debate, parecia ter dado certo. Nahla ficou interessada e começou a falar sobre receitas. Eu respirei aliviada e resolvi deixar para trás qualquer julgamento e observação inútil naquele momento. Aquela garota já enfrentava pesos demais, e eu tinha acabado de notar o quanto eu era raza e, ao mesmo tempo, cheia de certezas ocidentais. 

Deste modo, à cada dia Nahla falava de uma receita diferente que fazia junto à irmã, que morava com ela. Eram doces e caldas exóticos e deliciosos – mais tarde, tive a oportunidade de experimentar mais pratos e sobremesas árabes, e parei de passar vergonha. As receitas, eram feitas de acordo com o pedido do seu marido. Aos 18 anos, Nahla era casada há três e me disse que o marido trabalhava na embaixada árabe de Dublin:

_Foi a minha família que escolheu ele para mim. Mas a minha irmã e minha mãe já tinham me dito que ele era bonito e eu também já tinha visto ele por fotos. Era um rapaz bom e trabalhador e meus pais ficaram felizes. Eu sou muito feliz com meu marido, ele é muito apaixonado, adora as comidas que eu faço e nos damos muito bem.

Aquilo era bem interessante para mim. Imaginar como um terceiro podia escolher o seu marido. Na verdade, era assustador, eu sentia pavor e compaixão pela garota, mas tentava, ao máximo, não expressar nenhum julgamento. Ela também devia sentir pavor ao me ver vivendo sozinha em um continente diferente. Nós duas ainda não conhecíamos a definição de sororidade, embora já praticássemos entre nós.

Um dia, ela me disse baixinho:

_Quero te mostrar uma coisa, mas não posso deixar mais ninguém ver.

Eu fiquei super curiosa. Tentava esconder a ansiedade, não sabia se era um presente, uma comida típica, não fazia ideia. Então, tirando o celular de dentro da bolsa, Nahla selecionou uma foto e disse:

_Esta sou eu.

Aquela foi a apresentação mais original e diferente que eu já havia presenciado na vida. Uma pessoa me mostrando, com cuidado, a sua face pela tela do celular, por meio de uma foto em formato digital. E era linda, com uma beleza marcante! Cabelos negros, sobrancelha grossa, os olhos com bastante maquiagem, jóias e um vestido de um tecido brilhante de cor verde, que deixava perceber o corpo jovem e esbelto da mulher. Aos poucos, ela foi mostrando mais fotos. Percebi então, que aquilo era um ensaio fotográfico profissional.

_Como você é bonita! Disse eu.

Naquele momento, vi a vaidade nos olhos de Nahla, que nunca deixavam transparecer nada.

_Sim, eu sou muito bonita.

Foi aí que tudo mudou. Parece que o jogo tinha virado, não é mesmo? Diferente de mim, ela tinha uma autoestima ótima, e eu que precisava ser empoderada ali. Eu achei aquilo bem legal. Ela sabia da beleza que tinha, parecia não ter problemas de amor próprio e isso era maravilhoso! A partir daquele momento, eu descobri na vivência o que iria dominar o mundo. Éramos tão diferentes, mas éramos irmãs. 

_Agora vou te mostrar o meu marido. Disse ela, orgulhosa.

Um homem bonito e moreno, vestindo um turbante e um terno escuro, sério, ao lado da jovem esposa. Ao fundo, uma tapeçaria exótica e luxuosa, um pé direito bastante alto com um cortinado sofisticado. Nahla parecia possuir uma vida de luxos.  

Aquelas fotos foram uma experiência única para mim. Me senti muito privilegiada e agradecida pela confiança daquele momento e não conseguia parar de expressar. Aquilo para mim seria eterno.

Tempos depois saímos da escola e nunca mais a vi, nunca mais a verei. No entanto, sempre me pego lembrando das nossas conversas e de como as coisas foram fluindo. Nahla era, até então, minha primeira referência do mundo árabe. Mas isso não durou muito. Em menos de um ano, conheci a Cris, uma garota de Santa Catarina que, apaixonada pela cultura árabe desde criança, conseguiu uma bolsa em um programa de trabalho voluntário no Omã.

_”Omã? Mas o que você foi fazer naquele lugar?”. Era o que todo mundo me perguntava, disse Cris. Gente, eu amo aquele lugar! Se eu pudesse, eu ficava lá e não voltaria nunca mais! Vocês não têm ideia do que é o Oriente Médio! Aliás, ninguém tem ideia do que é o Oriente Médio!

Com Cris, eu poderia fazer interrogações sobre tudo, tudo o que não tinha coragem de perguntar à Nahla.  

_As melhores festas e as melhores comidas, eu experimentei lá. As festas eram só para mulheres, tudo separado, mas tinham as músicas mais animadas no volume mais alto que eu já imaginei, muita fartura, muitas frutas típicas e muitos doces deliciosos! As mulheres tiram as burcas e véus e se vestem super bem, com joias e roupas maravilhosas!

_Mas como era trabalhar no país onde as mulheres são tratadas de forma tão “diferente”? Você não sentia medo? Perguntei.

_Sim, claro que eu sentia medo. Mas até o próprio programa de intercâmbio nos orientava a nunca sair sozinha, não sair à noite jamais, usar sempre o uniforme da empresa para eles saberem que estávamos trabalhando. Existem muitos casos de estupro e a questão é séria. Eu sofri muito preconceito por ser mulher, de pele branca e olhos azuis. Mas em momento algum nada me fez recuar, porque o prazer de estar ali era maior que tudo. Era um sonho realizado.

Eu via nos olhos da Cris a felicidade que eu não conseguia enxergar nos olhos de Nahla. Talvez seja porque os olhos são melhor interpretados quando podemos associá-los à um sorriso bem largo! Pode ser também que os olhos de Nahla não brilhassem tanto pelo fato de Cris simplesmente ser feliz pela sua escolha, pela liberdade de escolher algo que se quer.

Talvez eles não brilhassem tanto porque eu ainda tinha meu preconceito velado e não conseguia enxergar. 

Felizmente, os dois exemplos citados são de mulheres felizes dentro daquelas culturas. Existem aqueles casos que jamais saberemos, de mulheres que jamais terão a oportunidade de frequentar uma classe de idiomas ou um programa de intercâmbio voluntário. Mulheres que sequer podemos ver os olhos… Mulheres que mentem com os olhos para não sofrerem algum tipo de punição ou abuso, e mulheres que, mesmo com a face e o corpo descobertos, olham para o chão, nos quatro cantos do mundo…

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Vídeo delas – Mulheres na arte de rua

(Tradução abaixo) Entrevistamos a argentina Rosario De Schant, 29, engenheira química e pintora artística mais conhecida como Rodesh. Rosário, que se intitula iniciante, pôde dar espaço à sua arte no México e na Espanha, e comenta como o muralismo está bastante presente e se encontra em ascensão em toda a América Latina.

“Tive a oportunidade de trabalhar em projetos sociais onde os artistas destinavam seu trabalho a comunidades com menos recursos e propõe resgatar os espaços públicos com luz e cor e propõem que a arte atinja quem de alguma forma, não poderia custear e ter acesso a ela. minha experiência nesse tipo de contexto é que a as pessoas são extremamente agradecidas e gostam muito o valor dessas propostas” .

A entrevista completa da Rosario você confere em aqui e também em  neste link .

Chega mais!

Lugar de mulher é na rua – as hermanas na street art

Irene Lasivita
Irene Lasivita, Argentina

Mulheres encontram seu lugar nos espaços urbanos e expressam por meio da arte questões políticas e sociais, como a desigualdade de gênero e a representatividade das minorias

 

Arte de rua. Arte na rua, arte onde ela quiser estar. A street art é um convite para olhar para a cidade com mais atenção e perceber que, assim como os muros e as paredes não estão esquecidos, há muitas histórias que não podem mais ser silenciadas. Milhares de pessoas passam pelas ruas todos os dias e se sentem tocadas ou representadas por aquela manifestação e esse é justamente um dos propósitos das diversas expressões artísticas urbanas.

Para criar um diálogo e ampliar o contato entre a arte e a sociedade, inúmeras técnicas são utilizadas, entre elas grafite, muralismo, estêncil e colagem, e cada um traz sua própria história. Na Grécia Antiga, já se utilizavam formas artísticas para se expressar em público.  O grafite, por exemplo, surgiu nos Estados Unidos, na década de 1970, e, na América Latina, veio na conturbada época das Ditaduras Militares. Antes, uma arte marginalizada, adquiriu com êxito seu destaque nos espaços públicos do mundo todo. Bem antes disso, no século 20, o México já encontrava uma forma de fazer a arte se tornar um instrumento de voz política. Como uma manifestação contra o opressor espanhol, diante do analfabetismo, o muralismo, a arte de pintar sobre as paredes, tornou-se uma estratégia de educação política popular. A técnica ganhou força na ditadura porfirista e na exploração capitalista norte-americana, e, segundo seu mestre Diego Rivera (1886-1957), “é uma arma”, sendo um instrumento revolucionário.

O feminino na arte de rua

As mulheres vêm deixando suas artes espalhadas nas ruas, nos guetos e nos becos do mundo. Após anos na luta pela igualdade de gênero – que, vale ressaltar, ainda está no começo -, o que vemos é um reflexo de uma sociedade patriarcal, no qual a arte feita pelos homens é ainda bastante dominante: o número de homens artistas de rua é bastante superior ao número de mulheres, que nunca excedeu a 10%. Mas, aos poucos, este cenário está mudando. As mulheres têm alcançado mais a visibilidade com seus trabalhos, que, no geral, são pautados em questões de gêneros e representatividade das minorias.

Dessa forma, uma nova geração de mulheres vem redefinindo o street art mundo afora. Um dos grandes nomes é Shamsia Hassani, uma das primeiras e poucas mulheres da arte de rua no Afeganistão. A artista pinta mulheres muçulmanas em burcas azuis, a cor da liberdade. Outros nomes são Miss Van, pioneira do street art feminino, que começou grafitando nas ruas de Toulouse, na França, onde nasceu, e hoje se encontra em Barcelona, cidade onde se estabeleceu como artista. Também temos Faith 47, a sul-africana conhecida por seus trabalhos engajados, e Swoon, que conseguiu levar seu trabalho das ruas para as galerias de arte e museus mais importantes do mundo, como o MoMa, o Museu de Arte Moderna de Nova York.

No intuito de aumentar a porcentagem de mulheres na arte de rua, movimentos e associações no mundo inteiro, ajudam a tornar a participação feminina mais expressiva e em pé de igualdade. Em Buenos Aires, na Argentina, as 170 mulheres da Associação dos Muralistas Argentinos (AMMurA) iniciaram, em agosto, um movimento de expressão da arte  muralista em todo o país. A intenção é promover a participação de 50% das mulheres em festivais, eventos e obras públicas, por meio de competições abertas e com júris rotativos compostos por 50% mulheres. O movimento ainda tem o objetivo futuro da criação de uma rede de mulheres muralistas latino-americanas, transcendendo fronteiras.

Nesse cenário de redemocratização da arte, entrevistamos a argentina Rosario De Schant, 29, engenheira química e pintora artística, mais conhecida como Rodesh. Rosário, que é iniciante, sentiu-se segura com os movimentos a favor da arte de rua feminina e todo esse acolhimento, e pôde assim dar vida à sua obra no México e na Espanha. Ela comenta como o muralismo está bastante presente e em ascensão em toda a América Latina. Quando perguntada se vê alguma diferença entre Espanha e Argentina no tratamento da arte de rua, Rodesh é bastante positiva. “Eu acredito que há mais recursos na Espanha e nos países desenvolvidos, por exemplo, o que pode resultar em mais festivais, mais apoio do governo para espalhar a palavra desta forma de arte. Mas, definitivamente, está crescendo cada vez mais nos países latinos”, conta a artista.

Segundo ela, o que incomoda ainda é o fato de algumas pessoas não estarem abertas ao conceito de arte de rua e confundirem erroneamente com pichações, e, por isso, sua arte ter que enfrentar alguma resistência. “A verdade é que o muralismo toma as ruas como uma forma de arte popular. Felizmente, com o passar do tempo, há mais pessoas que acolhem e reconhecem o valor dessa arte”, relata.

Para Rodesh, os projetos que envolvem o muralismo trazem sempre um caráter social, o que muitos desconhecem.

“Tive a chance de participar de projetos sociais onde os artistas levam seus trabalhos para comunidades de baixa renda, a fim de recuperar espaços públicos com luz e cores, permitindo que a arte esteja disponível para pessoas que, de outra forma, não poderiam pagar e ter esse tipo de acesso. As pessoas ficam felizes e são muito gratas por essas propostas”, pontua.

Dejándose mirar, como la Luna

Arte Dejándose mirar, como la Luna (Rodesh)

Sobre o número de mulheres na arte de rua ser ainda menor que o de homens, Rosário aborda o fato da desigualdade de gêneros de tantos anos ainda influenciar nessa questão.

“Vejo que o número de mulheres convocadas nos festivais de muralismo é sempre uma minoria. Eu conheço um caso de uma colega que parou de ser considerada em um evento particular porque ela não era mais solteira. A inclusão de mulheres é necessária tanto na arte em si quanto na questão organizacional/institucional”, revela a argentina.

Quando perguntada sobre o que ainda gostaria de aperfeiçoar em seu trabalho, ela conta que tem a habilidade de fazer sua arte em tinta acrílica, mas que está ganhando cada vez mais prática para dar um passo maior. “Adoraria experimentar com spraypaint, pois te dá agilidade, ótima capa e efeitos legais, mas requer algumas habilidades sérias, então eu ainda preciso de um pouco de prática”, sorri. Mas isso é questão de treino. Ela sabe que para ela, para todas, tanto nas ruas, quanto em qualquer lugar, quando a gente quer, o céu é o limite! (Ou, talvez, nem ele seja).

A arte de rua dispensa as galerias e os museus para estar no dia a dia das pessoas. Seu lugar é no espaço público, no olhar de quem passa a caminho para o trabalho, na pausa para o reconhecimento e para a representatividade. Agora, as mulheres vêm alcançando o espaço que é seu e o nosso desejo é ver e reconhecer o trabalho destas mulheres e nos sentir representadas por estas artistas. Que possamos cada vez mais ouvir o grito das nossas irmãs e acompanhar suas histórias de luta. Quanto mais mulheres ocupando espaços vazios na paisagem urbana, mais nossas vozes serão ouvidas.

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A vida ribeirinha na Amazônia – o relato de uma sereia

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Criamos um diálogo entre o folclore brasileiro e a experiência da jornalista que acompanhou de perto a vida das mulheres ribeirinhas no meio da floresta amazônica

 

Nossa história começa nas águas do Norte do Brasil, cheias, largas e profundas. Àguas de um bioma que interessa o mundo inteiro – tal como um elixir da existência humana. Estamos no Rio Amazonas e seus afluentes, e viemos reverenciar o pulmão verde do mundo. Com leitos e margens guardando segredos seculares, o rio é um dos maiores patrimônios da natureza brasileira. Até quando? Segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) o desmatamento na floresta aumentou 40% nos últimos 12 meses (dados de agosto 2018). A devastação chegou ao coração da Amazônia, atravessando os estados do Acre, norte do Mato Grosso, sul do Amazonas, parte de Rondônia e oeste do Pará. Até quando haverá a floresta e personagens para contar os seus segredos? Com esse ritmo, sabemos que não por muito tempo. Mas, felizmente, hoje, quem nos conta o inimaginável é a bela sereia Iara, que, na riqueza do nosso folclore brasileiro, vive, em sua origem indígena, nas águas do Amazonas. Iara, do indígena Iuara, que significa “aquela que mora nas águas”, com seus longos cabelos pretos e olhos castanhos, é aqui muito bem representada pela jornalista mineira Marcela Martins, 27.

Marcela (ou Iara) conta que sempre quis conhecer a floresta amazônica de perto, e, por meio do projeto de extensão “Expedição Nortear”, da UFPA, coordenado pelo professor Luiz Adriano Daminello, partiu para uma expedição audiovisual na Amazônia. A jornalista criou uma proposta de oficina de comunicação popular e midiativismo para alunos da comunidade ribeirinha Pedreira, que fica dentro da Floresta Nacional de Caxiuanã, PA. E o trajeto foi longo. A mineira conta que gastou mais de 24 horas de barco partindo de Belém até a base Estação Científica e, depois disso, mais 12 horas até a cidade de Portel, PA. Ainda foram necessárias mais duas horas de barco até a comunidade. “Foi uma experiência nova, muito agradável. No primeiro barco, como se fosse um ônibus de linha, as redes penduradas serviram para que nós passageiros pernoitássemos ali. Eu adorei e era bem confortável dormir na rede, embora pela primeira vez. É  super interessante navegar no rio (são braços do Rio Amazonas que ganham outros nomes), além de uma experiência muito grandiosa. Nas margens você vê a floresta e, como descreveu Mário de Andrade, é “um mundo de águas” numa paisagem linda, muito incrível”, conta Iara (ou Marcela).

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Segundo a jornalista, a proximidade com a floresta é algo encantador, e ela pode viver de forma particular e intensa.  “Os moradores da comunidade têm estórias de animais o tempo todo, como lagartos, macacos, etc, e sabem que existem onças ao redor também. As crianças de 5, 6 anos de idade saem com um facão grande para matar as cobras quando entram na mata. Eu achei tudo isso muito inacreditável. Os animais, em especial, me chamaram muito a atenção. Eu adorava ver os botos e ouvir as histórias de jacarés, que estavam sempre ao redor também.

Toda essa convivência com a floresta, o respeito que as pessoas que moram ali têm e o cuidado sobre onde não pisar, recolher o lixo, educar as crianças sobre os cuidados com a preservação da floresta, desvendar os barulhos,  saber e respeitar a que hora que deve ser feita cada coisa, isso é muito interessante”, conta.

Quer mergulhar nessas águas com a gente? Vem que a Iara te conta!

Sou a sereia que dança, a destemida Iara, água e folha da Amazônia

A sereia conta que a bacia do Caxiuanã tem várias comunidades e todas elas têm características semelhantes, algumas com mais recursos, outras menos, e os moradores fazem tudo de barcos. “Eles têm rabetas, que são como um pequeno barco a motor para deslocamento individual, e também barcos maiores, onde vão juntos para as escolas, ou para a igreja. A comunidade faz parte do município de Melgaço, PA, e tem Portel também na proximidade – ambas cidades pequenas, porém com mais recursos, como médicos e negócios. Dependendo do grau de dificuldade, os moradores precisam ir a Belém, que é a capital mais próxima”, relata Marcela. Ela conta que os  ribeirinhos possuem os ítens básicos na comunidade, como escola, transporte e alimentos, e o rio é parte integrante da rotina deles, que vivem da pesca e também do extrativismo. “Eles também plantam mandioca, fazem a farinha, e têm acesso a outros produtos de consumo que vêm da cidade por meio dos barcos. O almoço padrão é o açaí, que é a base da alimentação local, farinha de mandioca e um peixe”, conta. 

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Segundo ela, uma coisa que lhe chamou a atenção foi o fato das casas de palafitas serem muito arrumadas, muito bonitas, todas pintadas e decoradas com esmero.  A energia elétrica é fornecida por meio de um gerador à diesel para toda a comunidade com cerca de 20 famílias (este é, por sinal, bastante caro para eles, que dividem entre as casas o valor mensal) e, por isso, só durante duas horas por dia a comunidade inteira possui energia, das 19h às 21h. Nesse período, alguns ligam a TV e assistem às novelas e telejornais, depois muitos se recolhem para dormir. As casas até têm camas nos quartos, mas são meramente decorativas, pois eles gostam mesmo de dormir nas redes. (Para Marcela, foi uma experiência deliciosa). “No dia seguinte, as pessoas acordam com o nascer do sol e o dia parece durar 80 horas… Tudo passa devagar e leve.

O mais grandioso era conversar com as pessoas e ouvir suas histórias de vida. Vi que era muito comum o hábito de ir de casa em casa para fazer uma visita”, relata Marcela. 

A sereia conta que ficou hospedada na casa de uma senhora muito querida e, durante esse tempo, dava aulas da oficina para as crianças na escola. A Pedreira é uma comunidade de extensão territorial pequena que derivaram de uma primeira família, e então os moradores possuem graus de parentesco de segundo e terceiro grau. “Eles se chamam por tio, pedem a benção várias vezes, têm um respeito, um laço familiar muito interessante, o local é lindo, a floresta no fundo, o rio… E eles são muito organizados, muito afetuosos, têm muita liberdade, bastante diferente da cidade grande. Como disse, lidam com animais da floresta o tempo todo, entram e saem do rio a toda hora, e é claro que foi maravilhoso para mim estar vivendo tudo isso dessa forma rotineira também”, conta Marcela. Ela diz que percebeu que alguns saíram para fazer faculdade, mas retornaram pelo fato de valorizarem bastante a importância de se viver em comunidade. “Percebi que aquele é o lugar deles, muitos gostam de estar ali e de levar um estilo de vida que só aquele pedaço de chão e rio os proporciona”, conta Iara sereia Marcela. Para ela, a segurança de viver no coletivo e ter sempre com quem contar, é uma sensação que se assemelha  ao conceito de família. Embora o estrito acesso aos bens de consumo e aos tratamentos de saúde, a segurança e tranquilidade são pontos vantajosos em relação aos que vivem nas grandes cidades.

Os segredos das mulheres da floresta

Entre animais, rio, floresta e histórias ouvidas, a sereia pontua a força das mulheres na comunidade que, além de fazerem todo o serviço doméstico, as “manas” limpam o peixe e também quebram o casco e vendem as castanhas (as famosas castanhas do Pará ou Brazilian Nuts).

“As mulheres têm liderança na comunidade em geral e também espiritual. São elas que lideram a igreja local e administram a escola, as questões da comunidade. Se existe desigualdade de gênero, infelizmente sim, pois vivemos em país em que o machismo é muito forte e lá não é diferente, mas vi muita voz e participação ativa delas, sim”, ressalta. 

Marcela conta que as mulheres são bastante respeitadas no geral. “Há uma senhora que cuida da medicina da comunidade inteira, como uma curandeira. Por meio do seu trabalho, vemos que essa é uma tradição passada de mãe para filha. Essa habilidade do conhecimento, de lidar tão bem e de forma maestral com as plantas, da entrega e fé na medicina natural pode ter um ar místico para nós. No entanto, observei que existe, embora talvez nem elas saibam, uma relação bem bonita da ancestralidade, das mulheres citarem as avós e as mães que já partiram, como exemplos ‘essa estória foi contada pela minha avó, essa receita foi feita pela minha mãe’, tudo isso é muito bonito”, conta Marcela sobre o encantamento da sabedoria passada de geração em geração.

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Diante de toda essa divindade que a floresta amazônica significa, A jornalista  faz um apelo para que as pessoas abram os olhos para o Norte do Brasil. “Existem outras realidades, outros mundos que acontecem de outras formas. Estar em um lugar diferente é perceber que existem outras maneiras de estar no mundo.  Não precisamos necessariamente sair do lugar onde estamos. Se as pessoas estão no meio da floresta, por exemplo, e vivem experiências bonitas, coletivas e são realmente felizes ali, de uma mesma forma, nós podemos ser felizes em qualquer lugar do mundo. Algo que levo também depois dessa vivência é o chamado para a conscientização sobre a floresta amazônica, que é essencial para o equilíbrio das águas, das chuvas no nosso planeta. Assim como todos os biomas, a floresta amazônica tem algo muito forte e para mim foi muito importante ver isso de perto e com meus próprios olhos.  Eu realmente percebi que a gente só existe porque a Amazônia está ali para equilibrar tudo, fazendo o mundo respirar.

Voltei da comunidade com essa urgência de falar sobre nossos biomas, sobre a preservação da amazônia”, finaliza a sereia.

Mas ela não para por aí,  e nem se vai. Como caetaneou Bethânia na força da sua voz, “Sou a sereia que dança, a destemida Iara, água e folha da Amazônia”, ela nunca se despede, a sereia fica para sempre eternizada na cultura, no folclore, espalhando sua mensagem de proteção das raizes amazônicas. Só que na nossa estória, “aquela que mora nas águas” não quer enfeitiçar os homens, ela luta para que o Rio Amazonas não se torne nunca apenas mais uma lenda brasileira.  

 

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