Dizem que os olhos são o espelho da alma. Mas e quando a gente não consegue decifrar a alma? Os olhos contam a própria verdade de um ângulo muito subjetivo, e nem sempre conseguimos entendê-los. Na maioria das vezes, precisamos de tempo e convivência. Com Nahla foi assim. Todas as manhãs, eu abria a porta da classe, e, lá estava ela. Eu chegava atrasada e sempre me sentava ao lado dela. Mas sentar ao lado de Nahla era uma experiência única e grandiosa, pelo menos para mim.
Olhos grandes, sem maquiagem – aqueles olhos nunca cruzavam com os meus. Pele morena e sobrancelha grossa. Era tudo o que eu podia ver no estreito espaço entre o lenço que cobria a cabeça e o rosto. Quando a conheci, tinha lido o livro “Princesa Sultana” há cerca de dois meses. A referida obra tinha mexido muito comigo, expondo a realidade das mulheres da Arábia Saudita por meio de relatos de uma jovem da nobreza e seu diário. Naquela época, eu ainda não tinha conhecido a Cris. Ela era uma amiga que havia morado no Omã e trabalhado como estagiária na exploração de petróleo. Ela viria me relatar muitas coisas que, até aquele momento, eu não sabia sobre a cultura e as mulheres árabes em geral.
Eu não escondia o meu interesse na cultura de Nahla. Queria saber como eram as coisas, realmente. Acreditava que, estar ali ao lado dela todas as manhãs, era um presente. O fato que mais me deixou curiosa foi a primeira vez que a vi bebendo água com a garrafa por debaixo do véu – Nekab ou Niqab, de acordo com o país dela, a Arábia Saudita.
Achava diferente como ela usava aquelas roupas, como ela se portava. Sempre tinha vivido no Brasil sem nenhum contato com ninguém da cultura Àrabe, até então, e tudo era novo para mim. Nas fotos da turma, Nahla nunca estava, pois era proibido pelos seus costumes, segundo ela. Com o passar do tempo, fomos nos falando todos os dias, e, com um conforto maior, conversávamos com mais frequência. Um certo dia, eu, desatenta, e sem medir o peso das minha palavras, após ela dizer algo sobre a Arábia Saudita, pontuei:
_Sim, eu sei um pouco a respeito do seu país, logo lembrando do livro da princesa.
Foi aí então que que, de interessada, eu passei a ser o alvo do interesse súbito dela. Virando bruscamente a cabeça e olhando fixamente para mim, pela primeira vez, ela perguntou:
_O que você sabe sobre o meu país? Eu acho que você não sabe nada.
Eu, sem graça, lembrei de tudo que havia lido no livro e, querendo evitar ao máximo o constrangimento e o choque entre as nossas duas culturas, disse, numa espécie de teste “pensa rápido”:
_Comida! A gastronomia árabe é muito famosa no Brasil!
Logo eu, vegetariana, que só conhecia tabule, hummus e pão sírio. Realmente, eu não sabia N A D A da cultura dela. No entanto, a minha estratégia para me safar do meu comentário e, dessa forma, evitar um debate, parecia ter dado certo. Nahla ficou interessada e começou a falar sobre receitas. Eu respirei aliviada e resolvi deixar para trás qualquer julgamento e observação inútil naquele momento. Aquela garota já enfrentava pesos demais, e eu tinha acabado de notar o quanto eu era raza e, ao mesmo tempo, cheia de certezas ocidentais.
Deste modo, à cada dia Nahla falava de uma receita diferente que fazia junto à irmã, que morava com ela. Eram doces e caldas exóticos e deliciosos – mais tarde, tive a oportunidade de experimentar mais pratos e sobremesas árabes, e parei de passar vergonha. As receitas, eram feitas de acordo com o pedido do seu marido. Aos 18 anos, Nahla era casada há três e me disse que o marido trabalhava na embaixada árabe de Dublin:
_Foi a minha família que escolheu ele para mim. Mas a minha irmã e minha mãe já tinham me dito que ele era bonito e eu também já tinha visto ele por fotos. Era um rapaz bom e trabalhador e meus pais ficaram felizes. Eu sou muito feliz com meu marido, ele é muito apaixonado, adora as comidas que eu faço e nos damos muito bem.
Aquilo era bem interessante para mim. Imaginar como um terceiro podia escolher o seu marido. Na verdade, era assustador, eu sentia pavor e compaixão pela garota, mas tentava, ao máximo, não expressar nenhum julgamento. Ela também devia sentir pavor ao me ver vivendo sozinha em um continente diferente. Nós duas ainda não conhecíamos a definição de sororidade, embora já praticássemos entre nós.
Um dia, ela me disse baixinho:
_Quero te mostrar uma coisa, mas não posso deixar mais ninguém ver.
Eu fiquei super curiosa. Tentava esconder a ansiedade, não sabia se era um presente, uma comida típica, não fazia ideia. Então, tirando o celular de dentro da bolsa, Nahla selecionou uma foto e disse:
_Esta sou eu.
Aquela foi a apresentação mais original e diferente que eu já havia presenciado na vida. Uma pessoa me mostrando, com cuidado, a sua face pela tela do celular, por meio de uma foto em formato digital. E era linda, com uma beleza marcante! Cabelos negros, sobrancelha grossa, os olhos com bastante maquiagem, jóias e um vestido de um tecido brilhante de cor verde, que deixava perceber o corpo jovem e esbelto da mulher. Aos poucos, ela foi mostrando mais fotos. Percebi então, que aquilo era um ensaio fotográfico profissional.
_Como você é bonita! Disse eu.
Naquele momento, vi a vaidade nos olhos de Nahla, que nunca deixavam transparecer nada.
_Sim, eu sou muito bonita.
Foi aí que tudo mudou. Parece que o jogo tinha virado, não é mesmo? Diferente de mim, ela tinha uma autoestima ótima, e eu que precisava ser empoderada ali. Eu achei aquilo bem legal. Ela sabia da beleza que tinha, parecia não ter problemas de amor próprio e isso era maravilhoso! A partir daquele momento, eu descobri na vivência o que iria dominar o mundo. Éramos tão diferentes, mas éramos irmãs.
_Agora vou te mostrar o meu marido. Disse ela, orgulhosa.
Um homem bonito e moreno, vestindo um turbante e um terno escuro, sério, ao lado da jovem esposa. Ao fundo, uma tapeçaria exótica e luxuosa, um pé direito bastante alto com um cortinado sofisticado. Nahla parecia possuir uma vida de luxos.
Aquelas fotos foram uma experiência única para mim. Me senti muito privilegiada e agradecida pela confiança daquele momento e não conseguia parar de expressar. Aquilo para mim seria eterno.
Tempos depois saímos da escola e nunca mais a vi, nunca mais a verei. No entanto, sempre me pego lembrando das nossas conversas e de como as coisas foram fluindo. Nahla era, até então, minha primeira referência do mundo árabe. Mas isso não durou muito. Em menos de um ano, conheci a Cris, uma garota de Santa Catarina que, apaixonada pela cultura árabe desde criança, conseguiu uma bolsa em um programa de trabalho voluntário no Omã.
_”Omã? Mas o que você foi fazer naquele lugar?”. Era o que todo mundo me perguntava, disse Cris. Gente, eu amo aquele lugar! Se eu pudesse, eu ficava lá e não voltaria nunca mais! Vocês não têm ideia do que é o Oriente Médio! Aliás, ninguém tem ideia do que é o Oriente Médio!
Com Cris, eu poderia fazer interrogações sobre tudo, tudo o que não tinha coragem de perguntar à Nahla.
_As melhores festas e as melhores comidas, eu experimentei lá. As festas eram só para mulheres, tudo separado, mas tinham as músicas mais animadas no volume mais alto que eu já imaginei, muita fartura, muitas frutas típicas e muitos doces deliciosos! As mulheres tiram as burcas e véus e se vestem super bem, com joias e roupas maravilhosas!
_Mas como era trabalhar no país onde as mulheres são tratadas de forma tão “diferente”? Você não sentia medo? Perguntei.
_Sim, claro que eu sentia medo. Mas até o próprio programa de intercâmbio nos orientava a nunca sair sozinha, não sair à noite jamais, usar sempre o uniforme da empresa para eles saberem que estávamos trabalhando. Existem muitos casos de estupro e a questão é séria. Eu sofri muito preconceito por ser mulher, de pele branca e olhos azuis. Mas em momento algum nada me fez recuar, porque o prazer de estar ali era maior que tudo. Era um sonho realizado.
Eu via nos olhos da Cris a felicidade que eu não conseguia enxergar nos olhos de Nahla. Talvez seja porque os olhos são melhor interpretados quando podemos associá-los à um sorriso bem largo! Pode ser também que os olhos de Nahla não brilhassem tanto pelo fato de Cris simplesmente ser feliz pela sua escolha, pela liberdade de escolher algo que se quer.
Talvez eles não brilhassem tanto porque eu ainda tinha meu preconceito velado e não conseguia enxergar.
Felizmente, os dois exemplos citados são de mulheres felizes dentro daquelas culturas. Existem aqueles casos que jamais saberemos, de mulheres que jamais terão a oportunidade de frequentar uma classe de idiomas ou um programa de intercâmbio voluntário. Mulheres que sequer podemos ver os olhos… Mulheres que mentem com os olhos para não sofrerem algum tipo de punição ou abuso, e mulheres que, mesmo com a face e o corpo descobertos, olham para o chão, nos quatro cantos do mundo…
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